segunda-feira, 12 de maio de 2014

Vácuo ilusório.

  Era mais um dia de Maio, sem graça e frio. A preguiça lutava ferozmente em mim contra a vontade de sair no frio... A vontade de sair venceu. Embora o relógio marcasse 16:32 - hora em que o inferno seria o clima mais adequado para descrever onde vivo - precisei colocar meu casaco para andar por aí sem congelar. 
  É sempre reflexivo sair para um passeio quando se está só. Caminhei por quase meia hora com a preocupação de nunca chegar a algum local interessante. Me vieram a cabeça mil canções diferentes, mil artistas já mortos e frases diversas e fragmentadas de tudo o que já li na minha vida: esse é meu momento de reflexão, um fragmento de tudo o que ouço e leio, porque eu sou um ser verbal. Voltei a mim abruptamente, perseguida pela fome e a imagem de uma padaria materializada na minha frente. Tateei meu bolso a procura de moedas, encontrei alguns trocados e escolhi alguns pães. Foi quando estava na fila do caixa que aconteceu.
  Recebi, com a mesma intensidade de um tiro, um cheiro estranho, pesado e conhecido. Era o passado. Um passado terrivelmente nojento e ruim, daqueles que te fazem um nó no estômago só de pensar em tentar lembrar. Foi nauseante e confuso, eu não sabia pra onde olhar, mas instintivamente comecei a procurar a fonte daquele peculiar odor, cravado de lembranças ruins. Olhei pra todas direções que pude, tentando reconhecer alguém, qualquer pessoa, qualquer coisa, mas era tarde demais. O passado tinha me invadido. Exibia uma aura mórbida e triste de algo que já fui um dia. 
  Ficou tudo escuro, frio e calmo, quase com um silêncio absoluto. Eu não sentia nada, não ouvia nada, não via nada. Eu era o nada naquele momento. A imagem de uma moça alegre e de cabelos longos se formou na minha frente e então percebi que era eu. Estava usando um vestido branco, longo e com rendas divertidas. O cabelo não tinha nenhum traço de pintura, nenhum fio cortado mais acima ou abaixo, era extremamente reto. A moça sorriu pra mim, aquele sorriso de comedora de livros e o cheiro ruim cessou. Reconheceu em mim o que ela era.
 - Gostei do cabelo. Como tive a coragem de fazer isso? Que azul lindo! - disse a moça.
 - Ele já foi todo azul, agora só está embaixo, mais prático - ela sorriu de novo, muito meiga, enquanto eu justificava a mudança capilar - E foi mamãe que ajudou a pintar.
 - Jura?! Ah... Aquela mulher é divina. Dá pra sentir que eu a amo e admiro mais ainda. O que aconteceu depois da oitava série? Você ainda conversa com o Mauro, Patrick, Kamila? Você está tão linda... Temos namorado? Não, né? Está com quantos anos? - começou a disparar, ela.
 - Temos 20 anos. Não tenho namorado... Nem quero ter - rimos juntas, sabíamos exatamente o quanto era divertido explicar que não éramos frívolas como pensavam. - Você parece tão mais segura de si... Está apaixonada?
 - Sim. - disse ela timidamente - Hoje estou apaixonada pelos pássaros. Eles causam um contraste incrível com o azul do céu, você não acha? Mas você parece tão abatida... Está desiludida com o que?
 - Não sei bem... Talvez nossa vida tenha dado um salto grande demais... Conseguimos passar na UnB, sabia? Lá é incrível. Você devia ter menos medo de ir pra lá, me faria muito bem. - falei com os olhos marejados
 - Ah... Pare com isso. Dá pra ver que você não se arrepende disso... Do tempo que demorou pra entrar. Não mudamos tanto assim... Eu consigo me ver em ti, sem nenhuma sombra. Mas por que seu coração está tão triste e pálido? - disse ela, mudando a expressão alegre para uma cara concentrada de preocupação e início de angústia.
 - Você levou muitas surras e ele ficou assim. Não está nada bonito, né? - afirmei quase chorando.
 - Então é por isso que estou aqui... Pra te curar. Engraçado, eu achava que era só um sonho! Vou te dar o meu coração, você quer? - disse exibindo aquele sorriso lindo. Eu não sabia o quanto ele era bonito e verdadeiro, aquilo também não tinha mudado. 
 - Um coração do passado... Não, obrigada. Ele não está tão feio... Ele tem coisas incríveis também, sabia? Você visitou o mar... E ele é muito mais perfeito do que você achava. Você foi ao Rio de Janeiro! Você foi incrível com os outros... Ajudou sempre quem precisava, e você ainda ama azul! E você descobriu um amor por músicas que ninguém vai entender. Você também parou de se importar com o que dizem, mas antes sofreu bastante. Você amou um ser humano, quase muito. Você descobriu que ama química... Você descobriu tantas coisas... Não posso aceitar seu coração, seria negar muita coisa e eu não aguento perder isso. - desabei em lágrimas ao expor tudo aquilo - eu adoraria...
  O cheiro ruim voltou de repente e sumiu. Eu estava na padaria perto da minha casa, parecia uma estátua. Olhos arregalados de curiosidade, e uma sensação de alívio enorme. Sonhadora. Era isso o que estava solto em mim. O 'eu do passado' era a coisa mais sonhadora que existia na face da terra e esse 'eu' conseguia o que queria justamente por ser como era. Estava decidido, era aquilo que me faltava: sonhar. Defini mais tarde que aquele cheiro terrível era a palidez e a dor do meu coração se esvaindo. 
  Voltei pra casa sentindo o frio se espalhar pelo meu corpo e sorri. Havia acabado de me apaixonar novamente. Como poderia alguém não se apaixonar pelo frio? Ou pelo calor do sol contrabalanceando o toque suave do vento? Por que aquilo tinha sumido? Eu tinha virado zumbi e não sabia. Tinha virado o que afirmei nunca ser. Esse foi o motivo de minha visita: me lembrar do que eu sou, me acordar para a realidade e o futuro totalmente incerto que eu tenho pela frente. 

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